Houve um tempo em que não precisávamos nos preocupar muito com a redação do contrato social de uma sociedade limitada. Bastava seguir o modelo. Mas duas mudanças recentes (uma na lei, outra na jurisprudência) nos obrigam a olhar com mais cuidado para este documento. A primeira é a alteração da regra geral de quóruns deliberativos em sociedades limitadas, o que vai impactar o equilíbrio de poder em muitas empresas. A segunda é a mudança de entendimento do STJ (Superior Tribunal de Justiça) quanto à forma de apuração de haveres devidos ao ex-sócios, ou a seus sucessores, em casos de dissolução parcial de sociedade. A boa notícia é que, em ambos os casos, uma boa revisão dos contratos sociais pode eliminar os problemas.
A lei 14.451/22 alterou os quóruns deliberativos das sociedades limitadas. A partir de agora, basta o voto de sócios que tenham mais de 50% do capital votante para aprovar praticamente qualquer matéria em assembleia ou reunião de sócios. Exceções são a nomeação de administrador não-sócio enquanto o capital social não estiver integralizado (o quórum é de 2/3 do capital votante) e a transformação de tipo societário (para o que é necessária a unanimidade de votos, salvo se o contrato social previr quórum inferior).
A parte boa desta mudança legislativa é a simplificação do procedimento deliberativo. Desde 2002, havia uma profusão de quóruns deliberativos diferentes (que variavam da maioria entre os presentes até a unanimidade), em diferentes pontos do Código Civil, o que gerava dúvidas e poderia provocar nulidades.
Mas a nova lei tem um aspecto negativo bem relevante. Isso porque sócios que tinham minoria de bloqueio perderam esse direito político, o que pode fazer com que certos desconfortos societários logo se transformem em litígios. Explico.
Para aprovar alterações de contrato social, desde a edição do Código Civil de 2002 era necessário o voto de sócios que detivessem pelos menos 75% das quotas sociais. Ou seja, o sócio (ou grupo de sócios unidos por acordo de voto) que detivesse mais de 25% das quotas sociais tinha poder de bloquear qualquer alteração de contrato social. Esse é um poder político relevante, muitas vezes central ao equilíbrio na relação entre os sócios. E esse poder político foi apagado com borracha pelo legislador, sem aviso prévio.
Nas sociedades em que o contrato social não for expresso quanto aos quóruns deliberativos qualificados, sócios minoritários podem ficar em posição desconfortável. Se, antes, o sócio detentor de mais de 50% do capital social tinha que alinhar com o sócio minoritário, a partir de agora pode não precisar mais. E, sem necessidade de alinhamento, o desconforto entre os sócios pode estimular demonstrações de poder, que podem gerar demonstrações de insatisfação, que podem encher a paciência de um dos sócios a ponto de ele preferir sair da empresa, exercendo seu direito de retirada (na forma do artigo 1.029 do CC).
E aqui vem à tona a segunda alteração no direito societário brasileiro que deve motivar cuidadosas revisões nos contratos sociais e acordos de sócios.
No ano passado, no julgamento do REsp 1.877.331, o STJ mudou seu entendimento sobre o tema mais complexo e relevante do direito societário: a apuração dos haveres devidos ao sócio, em caso de dissolução parcial da sociedade (o que abrange, principalmente, a saída voluntária, a exclusão e o falecimento de sócios). Afastou-se a aplicação do fluxo de caixa descontado como método de avaliação dos intangíveis constantes do balanço de determinação. Trata-se de um enorme erro técnico, com efeitos gigantescos sobre os empreendedores brasileiros.
Por meio do procedimento de apuração de haveres é definido o valor que a sociedade deve pagar ao sócio que se retira da sociedade. Conforme a doutrina e a jurisprudência construídas ao longo dos últimos 70 anos (literalmente), este valor deve corresponder ao valor econômico das quotas, para que se evite o enriquecimento indevido a uma das partes.
Avaliar uma empresa está longe de ser uma tarefa simples. Se fosse, ninguém perderia dinheiro aplicando em ações. Aliás, o exemplo das aplicações em ações de companhias abertas mostra com clareza o princípio básico da avaliação de empresas: considera-se não só a situação patrimonial da empresa no momento da avaliação, como também a sua capacidade de geração de riqueza no futuro. Estas projeções de futuro fazem com que não só fatos, como também rumores, afetem (como deveriam mesmo afetar) a cotação de ações.
Com base neste princípio de projeção da capacidade de geração de riqueza no futuro na avaliação de uma empresa, consolidou-se, na própria lei (artigo 1.031 do CC e artigo 606 do CPC) regra no sentido de que a apuração de haveres deve ser feita por meio da construção de um balanço de determinação.
O balanço de determinação não é uma simples atualização das contas do balanço contábil da empresa. É uma demonstração financeira nova, em que os ativos e passivos são reavaliados para que se busque seu valor real, que pode divergir muito de seu valor contábil. Além disso, podem ser criadas contas que não integram o balanço contábil, como as relativas aos intangíveis ainda não refletidos nas demonstrações financeiras e às provisões para cobertura de determinados riscos.
A possibilidade de inclusão de intangíveis deixa claro que não se está avaliando um conjunto inerte de bens, mas uma organização dinâmica de fatores de produção cuja avaliação só faz sentido se houver projeção de continuidade da atividade; ou seja, como referido anteriormente, se houver projeção para o futuro.
Para a precificação, a valor presente, desta capacidade de geração de riqueza no futuro, o método consagrado é a construção de um fluxo de caixa descontado, posteriormente validado por meio sobreposição do método de comparativo por múltiplos. É assim que são produzidos os valuations de empresas, antes ou depois da mudança de posicionamento do STJ.
Mas, de forma surpreendente, o STJ passou a afastar a possibilidade de utilização do fluxo de caixa descontado como forma de avaliação dos intangíveis em processos de apuração de haveres. Esta mudança de entendimento já foi objeto de muitas críticas. Todas justíssimas. Não vou repeti-las aqui. Para os fins deste breve texto, importa mais perceber os efeitos da mudança jurisprudencial.
A mudança de entendimento faz com que os haveres de ex-sócios tendam a ser calculados com base exclusivamente no valor presente de uma empresa, como se a empresa fosse extinta e liquidada hoje, sem qualquer continuidade de suas atividades. Mas o fato é que os demais sócios continuarão com a empresa, e se apropriarão, de forma direta, do valor econômico das quotas do ex-sócio. O absurdo é evidente, assim como os prejuízos que podem ser impostos aos ex-sócios.
É preciso enfrentar este problema, e buscar uma solução. A solução otimista seria trazer a matéria a debate, e esclarecer os julgadores sobre o erro que está sendo cometido. Mas, como sabemos que este caminho não é muito provável no Brasil, resta a solução realista: revisar urgentemente os contratos sociais e os acordos de sócios, construindo regras adequadas não só para a definição de quóruns deliberativos que mantenham o equilíbrio de poderes na sociedade, como também para que, em caso de conflitos insuperáveis entre os sócios, a porta de saída não seja uma penalidade para quem tem a maturidade de perceber que sua continuidade na empresa gera prejuízo para todos.